terça-feira, outubro 31, 2006

[82 / Oh, Really?]

Numa aula relativamente recente ouvi uma colega de curso desabafar a uma amiga em baixo volume que "já passei por más experiências que não desejo ao meu pior inimigo”.
Sorri ao ouvir aquilo.
Sorri, não de felicidade. Sorri, confesso, de uma leve ironia. Não é que não respeite o sofrimento que ela alega ter passado (e que eu não faço ideia de qual a especificidade contextual que o despoletou). Qualquer sofrimento merece o seu respeito.
A minha falta de apreço pela afirmação deve-se ao facto de ela provir de alguém cujo comportamento é incompatível com o conteúdo das palavras que proferiu. Alguém que não age na maioria das vezes com conscienciosidade social não revela grande respeito pelos outros. Alguém que interrompe sistematicamente conversas recorrendo a um maior número de décibeis, arrisca-se a decapitar a reputação silenciosa que lhe tenho confiado até àquele momento. Alguém que claramente avança e pára em frente a outra pessoa que já lá estava, dando-lhe o privilégio de ver as suas costas ao pormenor, desilude qualquer vítima (oh, quantas vezes isso se vê em grupos que dançam nos bares e que de repente se fecham à frente dos outros num abrir e fechar de olhos, e oh, que costas lindas, e oh, quantas vezes se dá um passo em frente para a reinserção, e oh, o fenómeno volta a ocorrer momentos mais tarde, e oh, há sempre um pequeno grupo fixo de pessoas a quem isto nunca acontece, e oh, isto não ocorre apenas debaixo de tectos musicais, e oh, o que estará a pessoa prejudicada a pensar nesses precisos momentos?).
Sobrevalorizam-se as pessoas que se manifestam exaustivamente. As que se auto-promovem sem fundamento aparente. As socialmente atenciosas e simpáticas (o reforço pode espreitar a qualquer esquina, não é verdade?). As que adquirem o sorriso plástico pronto a ser exibido em qualquer ocasião. As que retiram esse mesmo sorriso quando já não está por perto alguém a quem lhes interessa passar a imagem de que conhecem metade dos habitantes deste mundo. As que absorvem ilegitimamente as atenções. As que fazem sentir que os outros são um marasmo. As que manipulam as actividades ao sabor dos seus caprichos. As que vêem as suas vontades efémeras serem temporariamente saciadas pelos outros. As visivelmente dinâmicas. Seja lá o que isso for. Independentementemente da produtividade oca que isso fornece ao mundo. Porque aparentemente o mundo não sobrevive sem espectáculo.

Como se estas palavras fossem mudar alguma coisa...

Como se a minha opinião silenciosa interessasse...

terça-feira, outubro 24, 2006

[81 / Self-Inflicted Sabotage]

Idealização
Seria uma apresentação rápida e simples. Não valia a pena haver pensamentos exagerados. Toda a preocupação mínima acerca dela deveria ser rotulada de excessiva, até porque o peso deste exercício de comunicação seria nulo na avaliação da cadeira.
Pouco tempo levou até se encontrar o material mais adequado para ser divulgado, indo de acordo com os padrões temáticos sugeridos pela docente.
Tinha sido fácil, em grupo, escrever todos os argumentos que dariam sentido às palavras proferidas pelo porta-voz do grupo; esse porta-voz que eu conheço como ninguém, de tantos anos viver dentro da sua pele. Perspicazmente se tinham apagado as pequenas lacunas que surgiam à medida que se confrontavam ideias entre os membros do grupo. Tudo estava pronto para ser divulgado aos cérebros que se encontrariam naquela precisa aula.
Entraria na aula sem pensar nos minutos iminentes nos quais teria todas as atenções dirigidas para mim. No momento indicado, levantar-me-ia da minha cadeira, iria para perto do quadro, mostraria o filme escolhido pelo grupo de trabalho, falaria calma e perceptivelmente para as pessoas, escolhendo as palavras indicadas, e não sentindo nervosismo. Responderia a possíveis perguntas formuladas pela docente. Voltaria ao meu lugar e sentar-me-ia, dando vez ao grupo seguinte.


Realidade
A componente teórica dessa aula prolongou-se para além do previsto, pelo que apenas os grupos que não escolheram programas de prevenção em saúde mental em formato electrónico os apresentariam nessa aula. O meu grupo, tal como já referi, tinha optado por um filme retirado da internet.
A minha apresentação passou automaticamente para a semana seguinte. Foi pena... Já estava mentalizado para fazer a apresentação nesse dia…
A semana passou.
Cheguei atrasado à aula. Quando surgiu o momento de ir apresentar, não encontrava no meu caderno os argumentos redigidos. Uma colega do grupo perguntou-me se preferia levar o caderno dela (aberto prontamente na página em que ela os tinha escrito). Não me iria sentir confortável por ter de decifrar as palavras da caligrafia dela (não é que fosse uma caligrafia discrepante da minha, mas seria necessário debruçar-me durante mais tempo sobre o caderno dela em plena apresentação) e a disposição com que espalhou as frases.
Outro grupo ofereceu-se para apresentar o seu trabalho nesta vaga temporal. Pude então procurar menos sofregamente pelas páginas do meu caderno o precioso conteúdo que parecia ser invisível nesse momento. Encontrei o que queria. Esperei pela minha vez, caindo no erro de focar a minha atenção na apresentação do grupo actual.
Surgiu o momento de me levantar e ir para perto do quadro. O nosso pequeno filme sobre prevenção da violência doméstica foi divulgado. Teve boa aceitação por parte de quem o viu dentro daquelas quatro paredes. Houve mesmo suspiros de indignação face às estatísticas brutais que eram apresentadas.
O filme termina. A minha comunicação inicia-se.
Que discrepância... Rapidamente me apercebo que me começo a afundar nas palavras erradas com que começo as frases. Não me consigo lembrar dos argumentos que tinha escrito no caderno (algo que naturalmente ocorre a qualquer pessoa que não relê, ao fim de uma semana, as palavras que era suposto ter praticamente decorado e exercitado previamente). O nervosismo é evidente. Passo a ser o actor numa peça de teatro em que o público fica com a sensação de que ele não estudou convenientemente o seu papel. Os holofotes iluminam-no. O início da frase é proferida. Surge uma pausa inesperada. O silêncio põe a descoberto a expectativa do público face às palavras do desamparado actor. Os meus olhos cravam-se no caderno. Tento ver rapidamente as palavras escritas. O ponto sussura-lhe as deixas, mas nem assim ele consegue improvisar. Precisa de ouvir as frases na sua totalidade. Limito-me a ler o que tenho escrito no caderno, inserindo pontualmente umas palavras diferentes. Fico com a sensação de que me repito, porque no início da apresentação divaguei, tentando dizer aquilo que me lembrava remotamente do que tinha escrito no caderno. O nervosismo do actor é bastante evidente para o público. A cena demora o seu tempo até acabar, mas o desejado final acaba por vir. Leio as palavras até ao fim. Não surgem perguntas da parte da docente: alívio sentido por mim, associado a um estranho sentimento de injusto facilitismo. O meu nervosismo deve ter sido tão notório que a docente preferiu não me questionar absolutamente nada acerca do modo como o meu grupo encontrou aquela informação. Foi o único grupo a não ser confrontado com questões.
Sentei-me no meu lugar acompanhado de uma sensação de falhanço.


Porque não consigo veicular oralmente as minhas ideias do mesmo modo que o faço através da escrita? Porque fico preso à noção de que tudo o que eu digo em directo está a ser avaliado pelo público? Porque sinto que é avaliado aquilo que digo, e a forma como o digo? Porque me sinto refém deste tipo de avaliação social? Porque não sou uma daquelas pessoas que fala com convicção inabalável em apresentações deste cariz?

quarta-feira, outubro 18, 2006

[80 / Possess Me Eternally, Miss]

Finalmente sinto a tua presença. O tempo passou sem que eu te pudesse reencontrar. Procurei-te afincadamente, mas fui impedida de te descobrir. A tua outra metade (sim, a negativa) barrou-me o caminho e impediu-te de regressar à superfície. Mas agora voltaste a mostrar a tua outra face. Trepaste incansavelmente. Faço uma vénia ao teu esforço heróico. Ao sucesso da tua sobrevivência. Encontrei-te e não quero voltar a perder-te.
Passou algum tempo desde a última vez que nos vimos. Deixa-me olhar-te de frente. Ver esses olhos que conheci tão bem. Ver a tua cara que me tem sido familiar nestes últimos anos. Reconheço essa imagem: está igual àquela a que me habituei. Quero tocar-te. Dar-te o abraço que não se vê mas apenas se sente. Não me vês mas sentes e agradeces a minha presença. Sinto-me grata por poder estar contigo de novo.
Quero ver-te na globalidade. Quero entrar no teu interior. Avaliar o teu estado mental. Deixas-me? Não me ouves. Vou fazê-lo na mesma. Serei uma legítima intrusa do teu íntimo. Sei que não te importas. Também estou consciente de que infelizmente não sou a primeira a fazê-lo. Vou aceder delicadamente ao teu cérebro.
Mas... Que negatividade brutal é esta? Que conteúdo mórbido é esse nos teus pensamentos? Que mazelas irreversíveis apresentas? Por que razão estás diferente? Os teus níveis de libertação de neurotransmissores estão diferentes... O teu cérebro está claramente bem desenvolvido nas secções responsáveis pelas emoções negativas. Elas têm sido notoriamente exercitadas recentemente durante a maior parte dos dias. Sim, estão preparadas para entrarem de novo em acção. O caminho está aberto para isso.
Porque me sinto preocupada apesar de estar presente? Presumo que a estabilidade da minha proximidade é ténue. Não, não pode ser. Não te quero voltar a perder. Tenho medo que desapareças por um tempo indeterminado e preocupante. O que despoletará o regresso forçado da minha ausência?
O abraço que te dou não é suficiente. Tento agarrar-te ferozmente. Encubro-te. Camuflo-te. Tenho-te seguro. Estou a proteger-te. Agradeço a parte dos teus mecanismos mentais que me têm ajudado nesta tarefa. Eles ampliam o meu alcance. Estou aqui. Quero continuar aqui. Precisas de mim. Deixas de pensar em sobrevivência quando sentes que estou a vigiar-te e a tocar-te. Procuras desesperadamente falar comigo. Queres-me como teu vínculo permanente.
Mas és escorregadio. Deslizarás pelas minhas mãos caso haja um abalo considerável. Voltarás a cair naquele buraco escuro, largo e profundo onde mora o desconsolo humano. Voltarás a estatelar-te. Quero evitar isso a todo o custo. A nova queda poderá ser fatal. Grito-te. Imploro-te que não me abandones. Aprisiono-te, mas as correntes são quebradiças. Tento desviar a tua atenção dos estímulos externos agressivos.
Que rudimentar é a minha intervenção... Apenas posso contar com a tua força interior e isso faz-me sentir impotente...
Envergonho-me da minha intermitência. Sinto culpa de cada vez que te vês forçado a seguir os trilhos que não queres pisar. Ponho em causa a minha dignidade quando me apercebo que os teus medos se tornam reais, um a um, e te consomem lenta e dolorosamente...
Há tantos como tu... Não fazes ideia de quantos são ou quão próximos de ti estão... Tantos os que gritam pela minha presença mas eu não os consigo resgatar...
Sinto-me ofuscada pela escuridão do terror que te quer envolver. É difícil travar os intermináveis combates. Somos forças antagónicas de igual envergadura. Continuo a lutar pelo reconhecimento global do meu nome. Este nome inalcançável para muitos...
Eu. Dificilmente eu: resiliência.

sábado, outubro 14, 2006

[79 / Weak Connections]

Cada vez mais ponho em evidência mental os conceitos de “equifinalidade” e “multifinalidade”. Sim... Bertalanffy criou uma daquelas teorias que eu pensava que eram apenas para decorar, mas que acabou por se tornar involuntariamente numa ferramenta útil para a minha habitual avaliação do quotidiano: um pequeno mas importante desporto a que recorro. Uma actividade que pode ser muito perigosa e auto-destrutiva por vezes. Desconheço ainda as regras pela qual ela se rege.
Houve uma altura na minha vida em que comecei a pensar que talvez houvesse certos momentos em que as pessoas exagerassem aquilo que realmente sentiam. O motivo para o fazerem? Não o sabia. Ainda hoje não o sei. Cada qual terá as suas razões secretas para o fazer.
O que despoletou em mim esse pensamento foi um intercâmbio que tive com uma turma de uma escola secundária nacional. Na primeira fase dele, a minha turma foi morar durante três ou quatro dias nas casas dos alunos da outra turma. Repito: três ou quatro dias, numa cidade diferente e relativamente distante, em que as únicas caras familiares são as que se vêem sempre que as actividades lectivas englobavam as duas turmas. Após esse tempo, cada um de nós estaria a cargo do aluno responsável por nos alojar.
Para mim esses dias foram extremamente desgastantes e deprimentes. Ansiava pelo regresso a casa, onde me esperava o conforto da rotina que gostava de ter na altura. O mesmo não se passou com outras pessoas da turma. Ao fim desses três ou quatro dias, alguns deles tiveram a necessidade de mostrar ao mundo as lágrimas que a despedida lhes trazia.
Acredito que talvez num ou noutro caso as lágrimas se tenham devido a paixões fracas que a distância se encarregaria de dissolver mais tarde. Repito: num ou noutro caso. Não na maioria dos casos. Então porquê de tudo isto? Porquê fingir uma ligação forte inexistente? Não havia ali alívio por se voltar a casa? Todos nós sabíamos que não nasceriam grandes frutos daquela experiência.
Que razões pessoais levaram àquela equifinalidade: vários motivos levaram ao mesmo resultado de choro e tristeza superficial.
Porque está disseminado este fenómeno? Não me refiro a casos de intercâmbio, mas sim à superficialidade de certos comportamentos. Por que razão o repetimos em variados contextos?

segunda-feira, outubro 09, 2006

[78 / Statistics]

Durante um banho, ao som de música que pode ser considerada pesada (não vejo nada de pesado em letras negras e realistas):

- percentagem de pensamentos positivos: 5%.
- percentagem de pensamentos negativos: 95%.

sexta-feira, outubro 06, 2006

[77 / The Grip]

Naquela manhã que nunca mais será alcançada por qualquer um de nós, ele acabava de chegar à cidade.
Não ligou a quem estava à sua volta. Não quis saber que trajectos percorriam os outros, nem se interessou pelos motivos que os levavam também a pisar as pedras daquela praça de grandes dimensões.
À medida que ia caminhando com uma expressão neutra (talvez contemplativa, abdicando das expectativas que raramente se afiguravam realistas pela positiva), o seu olhar fixou-se num relógio gravado na parede de uma das várias fachadas altas. Era um daqueles que obrigam o cérebro a identificar a posição dos ponteiros e traduzir a especificidade do seu ângulo em números. É uma tradução que faz com os seres humanos se sintam mais confortáveis, dado que assim pensam conseguir controlar melhor a sua rotina. Mas a rotina de um ser biológico vivo é efémera. Todos nós chegaremos a essa conclusão mais cedo ou mais tarde.
Ele fez a tradução. Memorizou a informação que decifrou. Olhou para o seu relógio analógico. A hora deveria condizer. Não lhe interessava. Preferia os pensamentos que o absorviam interiormente. Começava a desprender-se da negatividade que a conscienciosidade pode trazer por vezes.
Subitamente decidiu ceder ao pensamento que lhe dizia para continuar.

Oh, que discrepância rapaz… As pessoas que tenham olhado para ti devem ter avistado o sorriso esboçado nessa face. Mas será que viram a vivacidade daquele olhar que indica que naquele preciso momento carregavas em ti a maior convicção que o mundo alguma vez vira?